Cara ou coroa: Wilbur vence e sobe no aparelho. Além de Orville, dois homens são chamados para ajudar a empurrar a máquina e soltar a corda que a prendia –o peso do invento impedia a pronta liberação. Wilbur liga o motor. O aparelho começa a se deslocar pelo trilho, descendo uma suave ladeira com inclinação de cerca de nove graus, e Orville corre ao lado dele, equilibrando a aeronave pela asa direita. Depois de percorrer uns dez metros, ou cerca de três quartos do comprimento total dos trilhos, o veículo já prossegue numa velocidade que Orville não pode acompanhar.

“Eu fiquei olhando enquanto a máquina passava pelo fim do trilho. (…) A máquina apontou para cima e subiu a uma altura de cerca de 15 pés [4,6 m] do chão, num ponto na casa dos 60 pés [18,2 m] além do fim do trilho. Após perder a maior parte de sua altura, gradualmente se afundou no chão, virada para cima em um ângulo de incidência de provavelmente 20 graus. A asa esquerda estava mais baixa que a direita, de forma que o pouso a atingiu antes”, anotou Orville em seu diário, registrando a falha. “O tempo de vôo desde o final do trilho foi de 3,5 segundos para uma distância de 105 pés [32 m].”

Há exatos cem anos, em 14 de dezembro de 1903, terminou em fracasso a primeira tentativa dos irmãos Wrights de fazer voar seu aeroplano motorizado, o Flyer. O teste ocorreu na praia de Kitty Hawk, na Carolina do Norte (EUA), local cuidadosamente escolhido por seus fortes ventos e pela presença de terreno razoavelmente plano e poucos obstáculos no solo. Três dias e muitos reparos depois, o Flyer foi novamente levado para fora do hangar. Desta vez, caberia a Orville fazer a primeira tentativa, que se deu às 10h35. A decolagem ocorreu muito mais depressa do que no dia 14, auxiliada pelo vento forte. Orville se postou deitado sobre a asa inferior (posição normal para a pilotagem do Flyer). Ele teve pouco tempo para aprender a pilotar o veículo ao deixar o chão. A aeronave oscilou, subiu, desceu, subiu e desceu, até que, ao final de longos 12 segundos, um pouso suave concluiu o primeiro vôo de um avião.

Wilbur teve sua chance em seguida, reproduzindo o mesmo resultado sob as mesmas condições. O terceiro vôo do dia melhorou o tempo para 15 segundos. E a tentativa derradeira, com o sol a pino, durou 57 segundos, quando foi percorrida uma distância de 260 metros. Os irmãos sabiam que tinham uma bomba nas mãos e, ao final da noite, dispararam um telegrama para o pai, Milton, residente em Dayton, Ohio.

No centenário da primeira decolagem motorizada, já é mais do que hora de parar de tratar os irmãos de Dayton, Ohio, como farsantes que apenas diziam ter voado antes de Santos-Dumont

“Sucesso quatro vôos manhã de quinta todos contra vento de vinte e uma milhas iniciados do plano somente com força do motor velocidade média pelo ar trinta e uma milhas mais longo 57 segundos informe imprensa casa Natal.” Seguindo as instruções dos filhos, Milton notificou a imprensa local. Na edição de 18 de dezembro, O “Dayton Daily News” relatava com orgulho o feito de Orville e Wilbur. O título da reportagem, hoje, seria ininteligível para a grande maioria dos americanos, mas era altamente elogioso: “Rapazes de Dayton emulam o Grande Santos-Dumont”. No Brasil, cem anos depois, todos sabem muito bem a quem o jornal estava se referindo.

Dirigíveis

O curioso é que Alberto Santos-Dumont nem trabalhava com a possibilidade de construir veículos mais pesados que o ar em 1903. Seu foco de atuação então eram os balões dirigíveis, cuja funcionalidade havia comprovado pela primeira vez dois anos antes, vencendo o Prêmio Deutsch, que exigia um vôo controlado de St. Cloud até o coração de Paris, um contorno da torre Eiffel e o retorno ao ponto de partida, em 30 minutos. A circunavegação da torre Eiffel fez com que ele recebesse congratulações de expoentes como os escritores H.G. Wells e Júlio Verne. Outros que reconheceram seu talento foram Samuel Langley, diretor da Smithsonian Institution, dos EUA, e o inventor Thomas Edison.

Santos-Dumont adquiriu fama mundial e demonstrou a viabilidade da aeronáutica. Como ninguém, popularizou o sonho do vôo e, com isso, ajudou a torná-lo realidade. Toda a fama que tem entre os brasileiros é justa. Pena que os motivos sejam equivocados.

Santos-Dumont não é o inventor do avião. E, verdade seja dita, nem tampouco o são os irmãos Wrights. Os veículos voadores mais pesados que o ar são, como outras tantas maravilhas do mundo moderno (e a televisão é o exemplo mais evidente disso), invenções resultantes da contribuição de muitas mentes.

Antes que os Wrights criassem seu Flyer, os construtores de bicicletas precisaram aprender tudo que se sabia a respeito do vôo. Enviaram uma carta em 30 de maio de 1899 à Smithsonian, pedindo toda informação disponível sobre o tema. Lá, Langley trabalhava avidamente para desenvolver o primeiro avião, sem sucesso. Após um período de estudo intenso, Wilbur e Orville começaram a desenvolver planadores. Um de seus contatos mais próximos era Octave Chanute, outro empreendedor interessado no vôo. Solucionaram, com experimentos pioneiros em túnel de vento, o problema da sustentação e do controle com veículos mais pesados que o ar.

Aliás, como bem entenderam os irmãos na época, o segredo do sucesso de qualquer avião seria a dirigibilidade. Por isso, se preocuparam em patentear seu invento assim que atingiram um projeto capaz de dar controle total ao piloto, antes mesmo de dar a ele um motor e hélices. A patente primordial dos Wrights, datada de 23 de março de 1903, dizia respeito basicamente aos sistemas de manobras de sua máquina voadora. Foi com ela que eles atravancaram enormemente o avanço da aviação americana, nos primeiros anos do século 20. Embora Santos-Dumont tenha passado a se interessar por vôos do mais-pesado-que-o-ar após ouvir de Chanute sobre o suposto sucesso dos irmãos de Dayton, pode-se dizer que sua solução para o design do avião foi obtida de forma totalmente independente.

Com sua mentalidade tipicamente ianque, os Wrights pretendiam vender seus aviões e, enquanto não o faziam, hesitavam em realizar demonstrações públicas. Quase três anos depois do primeiro vôo motorizado do Flyer, o brasileiro tentaria sua primeira decolagem com o 14-Bis. Em 7 de setembro de 1906, fez uma tentativa, fracassada, com um motor de 24 cavalos-vapor. Deu apenas um salto de seis metros, muito embora o motor fosse duas vezes mais potente que o do avião dos Wrights em 1903. Trocando por outro de 50 cavalos-vapor, em 23 de outubro conseguiu fazer um vôo de 61 metros, a uma altura de dois a três metros do solo. Finalmente, em 12 de novembro, o 14-Bis fez seu maior vôo: 220 metros, com altitude máxima de seis metros.

Essa decolagem passou à história como o primeiro vôo reconhecido pela Federação Aeronáutica Internacional –um dos argumentos em que se apóiam hoje os defensores da primazia de Santos-Dumont com o avião. Para eles, o reconhecimento imediato é fator de legitimação. “Tenho tentado mostrar que o critério de verdade no início do século exigia a demonstração diante de uma comissão e do público, com anúncio antecipado. Trata-se de uma forma de autenticação. Relatos testemunhais não tinham peso”, diz Henrique Lins de Barros, físico do CBPF (Centro Brasileiro de Pesquisas Físicas) e estudioso da obra do inventor brasileiro.

Ainda que frágil, o argumento é defensável. Muito mais problemáticos são aqueles que se sustentam pela afirmação de que o avião dos Wrights dependia intrinsecamente de uma catapulta para a decolagem. Esse dispositivo foi introduzido apenas posteriormente, para compensar a ausência de ventos que ajudassem o avião a subir. Em 1903, não houve catapulta. Se o vento realmente pudesse ser usado como critério para desqualificar os vôos dos Wrights, o mesmo se poderia dizer do vôo homologado de Santos-Dumont em 12 de novembro de 1906.

Depois de três tentativas frustradas de realizar um vôo com mais de 200 metros (parâmetro adotado para a homologação) no campo de Bagatelle, o brasileiro só conseguiu a façanha voando contra o vento e num declive. Lins de Barros, ainda assim, mantém sua posição. “Existem ventos e ventos. É impossível realizar uma prova ao ar livre sem vento. Em 12 de novembro, o vento era muito fraco –segundo a ata, uma brisa–, e o declive, muito pequeno.

Isso é bem diferente de um vento de 21 milhas por hora, que dá algo como 33 km/h. Com esse vento uma asa delta, por exemplo, levanta vôo sem precisar correr na rampa.” Apesar de invalidar a decolagem auxiliada pelo vento feita pelos irmãos americanos, Lins de Barros reconhece que os aviões comerciais fazem isso o tempo todo e defende que o mito da catapulta suma do mapa. “O avião escolhe a melhor posição –dentro das condições do aeroporto– e decola contra o vento”, diz ele. “Ficar falando que os Wrights dependiam da catapulta é uma das várias besteiras que devem ser abolidas do vocabulário nacional tupiniquim.”

Segredo

Quando do vôo de Santos-Dumont, os Wrights ainda mantinham segredo sobre seus inventos, e o brasileiro foi aclamado no mundo inteiro como o inventor do avião. Mas a primazia foi rapidamente transferida para os EUA quando Wilbur e Orville fizeram as primeiras demonstrações públicas na Europa, em 1908, voando dezenas de quilômetros, e os europeus mal completavam vôos de um quilômetro. Embora não tenha homologado os vôos de 1903, a Federação Aeronáutica Internacional hoje reconhece os irmãos Wrights como os primeiros aviadores. (Aliás, como poderia a FAI, fundada na França em 1905, legitimar um vôo de 1903, mesmo que fosse mais que comprovado?)

Evidentemente, o avião não terminou de ser inventado em 1903. Um processo de longos anos levou às configurações modernas da máquina voadora. A configuração “canard”, com leme à frente, foi adotada tanto no Flyer quanto no 14-Bis, mas logo rejeitada. Os “ailerons”, pequenas partes móveis que servem como miniasas para controlar o movimento no ar, foram introduzidos só com Santos-Dumont, mas estavam ausentes no Flyer. Em vez disso, os irmãos adotaram um desenho de encurvamento das asas (“wing warping”) para alterar o curso da aeronave, num desenho reconhecidamente bem menos eficiente.

Renegar a importância dos irmãos Wrights na aviação é como questionar o papel de Santos-Dumont na divulgação do vôo (tanto de dirigíveis como de aviões). Com o centenário da primeira decolagem motorizada do Flyer daqui a três dias, já é mais do que hora de parar de tratar a dupla de Dayton como farsantes que apenas diziam ter voado antes do inventor brasileiro.

FONTE: SALVADOR NOGUEIRA, Folha São P – Fernando Valduga via Folha On – Porto Alegre/RS

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